«Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”. Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.» (Mt 22,34-40)
No domingo passado, o Evangelho nos fez refletir sobre uma das três tentativas das autoridades religiosas de cercar Jesus para apanhá-lo de um modo ou de outro. Nas primeiras duas, Jesus deu respostas sábias que deixaram divididos entre si os fariseus e os saduceus. Afinal, todos queriam saber de que lado Jesus estava ou se, porventura, tivesse uma outra doutrina a ser apresentada que pudesse competir com as doutrinas ensinadas pelos três maiores rabinos da época: Hillel, Shammai e Gamaliel. A pergunta de fundo era a mesma para todos: qual seria a doutrina desse novo mestre? O que Ele pensava quanto à Lei? Essas eram as perguntas que levaram os fariseus a questionar Jesus.
O diálogo narrado no nosso trecho do Evangelho se abriu com a pergunta clássica que um discípulo fazia ao entrar numa escola rabínica: «Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?». Era, esse ato, a expressão de um profundo desejo do piedoso hebreu de dedicar toda a sua vida a Deus. Tal caminho era percorrido sobre dois trilhos: a Lei e a consagração.
Um hebreu entendia por “Lei” todo o conjunto das obras que Jahvé fizera para libertar o seu povo e consagrá-lo. A formulação do Decálogo, por exemplo, está estritamente ligada e é dependente das ações de Deus, tanto contra os Egípcios, quanto em favor de Israel; assim, por exemplo o fato de acompanhar o povo deserto adentro, a Sua providência nos momentos de maior dificuldade, etc. Tudo isso entrava no conjunto da ideia de “Lei” de Deus. Palavras e ações de Deus formam, na Escritura, uma só realidade. As “Palavras” que Jahvé deixou codificadas, especialmente nos livros de Êxodo, Levítico e Deuteronômio, indicavam o caminho a ser percorrido para que todo o povo de Israel pudesse se transformar num povo consagrado: «Se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, sereis reino de sacerdotes e nação santa» (Ex 19,5).
Outro aspecto do agir de Deus é chamado (na Escritura) “consagração”. Com isso se entende (falando de maneira genérica) o fato de “ser” e “se sentir” propriedade exclusiva de Deus. O inteiro processo pelo qual o Espírito conduz alguém a estar em profunda sintonia com Deus, de ter uma relação única, é chamado “consagração”. A consagração permitiria a Israel também agir “como Deus agiria” e, assim sendo, mostrar às nações o verdadeiro “nome” de Deus. Entendida desse modo, a “consagração” indicava como que a condição prévia, necessária, para que Israel pudesse realmente servir a Deus. O serviço autêntico seria justamente a “consagração”. Tal consagração era expressa pelo mais antigo “creio” de Israel, com esta fórmula: «Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo» (Lev 26,12).
Realmente, o ato de consagração carrega em si todo o potencial da missionariedade, pois, apenas quem mostra que Deus ocupa o centro de sua vida diz sem palavras o quanto vale Deus!
Com o tempo e com a progressiva perda do sentido originário do espírito da Lei, esta mesma lei se transformou numa série de regras e preceitos. De fato isso acontece com extrema frequência pois, em proporção a quando se perde o sentido das coisas, aumenta o número das regras e a sua minúcia. Na época de Jesus, a perda do espírito da Lei era tão grande que surgiu uma nova legislação feita pela interpretação que os rabinos davam da própria Lei. Havia quem dizia que a lei dos rabinos (615 “Mizvoth”, preceitos ou regras que proibiam uma ou outra coisa) era mais clara do que a própria Lei (Torah) e que apenas essa nova legislação era realmente eficaz para a consagração.
Com essas premissas, é fácil compreender o questionamento dos fariseus: «… Qual é o maior mandamento da Lei?». O eixo da questão, infelizmente, tinha sido deslocado sobre a jurisprudência, esquecendo o motivo principal pelo qual existia a Torah, ou seja, mostrar a santidade de Jahvé, mostrar que Ele é diferente dos outros deuses, dos ídolos que as pessoas constroem para si, mostrar que vale a pena se entregar a Ele… O Deus de Israel é um Deus que age de modo diferente, que ama e segue aqueles que a Ele clama e se entregam sem receios. É um Deus real, é uma pessoa que exige uma relação, pois Deus é relação e o homem, único ser capaz de criar e reinventar a cada momento relações, é imagem Dele. Esse era o sentido originário da Lei, mas…
Como não podemos deixar de ver, ainda em nossos dias, a terrível tentação de passar por cima das motivações básicas da nossa fé e privilegiar formas, métodos, práticas…? Por outro lado, podemos nos perguntar: quantos dos nossos gestos visam mostrar a “santidade” de Deus, a certeza na Sua ação providente e amorosa? Quantos dos nossos atos falam “de Deus” e demonstram aquela belíssima atitude que o autor do Cântico exprime tão bem com estas palavras da jovem para o seu amado: «O meu amado é para mim, e eu sou dele» (Ct 1,16)?
Quantas pessoas, que ainda hoje buscam a Deus, quando nos veem podem dizer: “ … ele é um homem de Deus!, … ela é uma mulher que transmite Deus!”?
Vamos considerar, por uns instantes, a resposta que Jesus deu ao fariseu que O interrogava. Para tanto peço a licença de recordar um detalhe significativo. Todo hebreu acima de doze anos recitava duas vezes por dia uma oração chamada “shemá”, composta de três partes, resumidas nestas palavras: «Amarás, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as ensinarás a teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa, e andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te» (Dt 6,4-9). Como sinal desse mandamento, o judeu piedoso guardava tais escritos em caixinhas (chamadas “filactérios”) amarradas no peito e na testa. Jesus respondeu bem como os fariseus esperavam, citou tais palavras, indicando com isso que todo o valor contido na Lei é um patrimônio da autêntica fé. O fariseu esperava exatamente que Jesus dissesse isto, todavia, para ele tais palavras não passavam de numa fórmula decorada.
Se os fariseus esperavam encontrar em Jesus uma resposta sobre o maior mandamento, tiveram uma surpresa. Por um lado, Jesus respondeu aquilo que se esperava mas, logo em seguida, acrescentou outros elementos que estavam decaindo da mente e do coração desses austeros fariseus. Ou seja: não é possível estabelecer qual é o “maior” mandamento sem ter claro que esse é também o “único mandamento”: «Esse é o maior e o primeiro mandamento» (o significado de “primeiro” não indica a ordem, mas a prioridade absoluta). Sem o amor a Deus, não tem sentido qualquer outra coisa que se faça. Tudo está condicionado ao amor, pois somente isso manifesta se existe ou não um sentimento de consagração ao Altíssimo. Somente a minha entrega sem reservas mostra realmente quanto alguém é importante para nós. Uma entrega condicionada, cheia de “mas”, “porém”, “vamos dar um tempo”… mostra que o outro é um elemento marginal da minha existência. Isso é mais evidente quanto o “outro” é o “Outro”, Deus!
É o homem por inteiro que é envolvido quando se trata de um amor prioritário e, com maior razão se consagrado a Deus. A parte é apenas parte, não é “tudo”. O amor real se caracteriza como algo de inteiro, não parcial. Não existe uma “meia-amizade”! No amor é o homem como um todo que se dá; dá a si mesmo e recebe o outro. Não recebe e dá apenas as suas capacidades, ideias, sentimentos, mas sim o que ele é e não é.
É o homem inteiro que se volta com tudo o que é a Deus. Isso, sim, é sinal de “pertença” pois, quando realmente somos apaixonados, quando realmente amamos algo ou alguém, é todo o nosso ser que fala dele. O amado está sempre nas palavras, nos sinais, na orientação fundamental das escolhas. O amado é procurado pelo amante, não é apenas uma das tantas coisas que existem na vida.
O homem que decide trilhar o caminho do Batismo, por exemplo, descobre passo a passo a riqueza dessa consagração que nos foi oferecida e se alegra pelo sentimento de recíproca pertença que nos faz saborear, mesmo que limitada e analogamente, aquilo que está no íntimo de Deus, que se comunica e se dá no íntimo da Trindade.
Com a sua resposta, Jesus não indicou um preceito, mas sim o critério que faz de todo preceito algo que tem ou não tem sentido. Na resposta, Jesus passava da ação (o que fazer) à relação (o que está por detrás). Fazer as coisas para Deus nem sempre indica o que sentimos por Ele. Como não lembrar a imagem daquele homem que disse ao Senhor: “… eu fiz até milagres em teu nome” e a resposta do Senhor: “eu não te conheço…!” (cfr. Mt 7,21-23). Ao contrário, quando sentimos pulsar o nosso coração somente ao ouvir Deus, a respirar ao sentir a Sua proximidade, então é possível perceber que algo de bem maior esteja já agindo dentro de nós e é isso que cria gestos espontâneos que nos impulsionam em direção do outro: é este o verdadeiro Espírito da autêntica Lei.
A resposta de Jesus continuou abrindo horizontes novos para um fariseu escrupuloso. Tocou três pontos: um novo modo de ver o caminho moral, o amor ao próximo e o amor a si mesmo; contudo, por questões óbvias, somente teremos como nos deter no primeiro.
Ao “shemá”, que o fariseu esperava ouvir, Jesus sugeriu um outro trecho da Escritura que diz: «…Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lev. 19,18), mas citou apenas a segunda metade do trecho: «amarás o teu próximo como a ti mesmo». Ora, é preciso saber que as palavras que Jesus indicou como palavras “agradáveis” a Deus (aquelas que citamos) são as últimas de uma série de mandamentos expostos ao negativo, todos eles com esta forma: «Não farás, oprimirás, não amaldiçoarás… etc.». Desse modo Jesus deu aos fariseus e a todos nós uma valiosa indicação: mais do que evitar isto ou aquilo, mais do que combater um limite ou defeito, mais do que lutar contra uma ou outra tendência negativa que encontramos em nós mesmos e em nossos instintos, é melhor e mais eficaz aprender a amar a Deus com a atitude própria de quem Lhe consagra o seu coração. Sem dúvida, isso é mais agradável a Deus e dá melhor resultado do que ficar combatendo isso ou aquilo. Quando aprendemos o verdadeiro sentido da Lei, quando sabemos o que significa colocar Deus como prioridade amorosa, então descobrimos que, lentamente, um a um, passo a passo, os limites que descobrimos na nossa vida, as incoerências, os medos etc. tudo vai desaparecendo, porque o amor a Deus e o amor de Deus tomam conta do nosso “homem total”.
Quantas vezes pode acontecer que, na tentativa de vencer um nosso defeito ou pecado, acabamos fazendo desse mesmo defeito o nosso “deus”! E que esse problema acaba ocupando todas as nossas atenções, a nossa mente, as nossas forças! O homem que se dá plenamente a Deus, dá a Ele o coração inteiro e dá também todos os defeitos e limites, não pensa mais em si mesmo, pois é Ele, o Senhor, o libertador de Israel e, diremos nós, o Redentor. Deixemos, então, que o Senhor seja o “Redentor do homem”, entreguemos a Ele a totalidade de nós mesmos, peçamos que nos mostre como e até que ponto se pode amar, e o resto o próprio amor curará.